domingo, 30 de setembro de 2007

Gaiola


Gaiola


Não morra de saudade,
pequenino passarinho,
preso aqui na cidade,
tão longe do teu ninho.

Aproveita, então, teu canto,
para suavizar o destino,
derramando, assim, o pranto,
já que és brinquedo de menino.

Quem sabe, talvez, um dia,
ainda voltes para casa,
levando no bico a alegria,
e a liberdade em tua asa.

Não perca, pois, a esperança,
de voar rasgando o céu,
a vida se reinventa como criança,
desenhando no papel.

Não se entristeça, passarinho,
ainda poderás ir embora,
revoando pelo caminho,
arrebentando a gaiola.

Papel em branco


Papel em branco



Folha branca
de papel,
branca eternamente
ficará;
sobre ti
nem um poeta
repousará;
sempre virgem
será.

Folha casta
de papel,
folha pura,
sobre ti,
nenhum vestígio
de ternura;
intocado será
teu véu.

Folha pálida,
sem tinta
ou grafite,
mensagem inválida,
sem lágrima
derramada,
ou qualquer palpite.

Folha vazia,
sem traço ou desenho,
retangular,
sem poesia;
folha esquecida
no armário,
na prateleira
de cima,
sob o peso
de um dicionário.

O belo horizonte


O belo horizonte.


O que fizeram
daquele belo horizonte,
que se põe
sobre a janela
no anoitecer
ou no despertar.

O que fizeram
daquele belo horizonte,
onde o sol
se põe por trás do monte
entre o escurecer
e o clarear.

O que fizeram
daquele belo horizonte
de cores vibrantes,
os céus metálicos
inexistentes antes,
ameaçam o ar.

O que fizeram
daquele belo horizonte,
que guarda criança
debaixo da ponte,
e tem o céu rasgado,
pela telefonia celular.

Vai-te


Vai-te


Vai-te embora
velho ditador,
já passou tua hora,
chega de tanta dor.

Caminha ligeiro,
para bem longe daqui,
ninguém suporta teu cheiro,
tu tens que partir.

Vai-te embora,
facínora de todos os tempos,
vai viver de esmola,
sob a fúria dos ventos.

Leva daqui
teus planos nojentos,
tu que há de ruir,
com os membros pestilentos.

Esconda-se bem fundo,
bem por debaixo da terra,
tu que contaminou o mundo,
com a sujeira da tua guerra.

Rasga teus pulsos,
faz o teu sangue jorrar,
vira-te de bruços
para que mil espadas possam penetrar.

Morra velho opressor,
para matar a vergonha,
daquele que sofre de dor,
quando o mundo não mais sonha.

De teus mortos, não mais se esqueça,
mas suma de vez, desapareça,
antes que os vivos estourem
os miolos da tua cabeça.

Berço brasilis


Berço brasilis


Presos nos fortes, nas feitorias,
Arrastando correntes nos portos,
São homens, mulheres, mercadorias,
Coisificando seus corpos.

São vivos, são mortos,
No embalo das ondas do mar,
São pobres, destroços,
Prestes a naufragar.

Arrancados da brenha do mato,
Amputados do coração da aldeia,
Capturados, de vez, de assalto,
Em plena noite de lua cheia.

No escuro fundo dos porões,
O frio, o calor, o sal, o vômito,
No interior infecto das embarcações,
Todos de olhar atônito.

Submersos no pânico, no banzo,
Velejam minutos eternos,
Seus dias são mais longos,
No alvorecer dos tempos modernos.

Da Costa da Mina, de Moçambique,
Da Serra Leoa, do coração de Angola,
Só resta a dor e a saudade,
Na hora de ir-se embora.

Deportados da terra mãe,
Choram pelo seqüestro das filhas,
Derramam o pranto em sangue,
Pelo espírito de suas famílias.

Quem, então, será que se foi,
Quem, então, será que ficou,
Quem sobreviveu,
Ante o fogo do caçador?!
Ao desembarcarem nos portos,
Seguem a trilha dos mercados,
Onde seus novos rumos,
Serão, enfim, negociados.

É ferro quente,
A fome, o suplício, o açoite,
É gemido de gente,
Noite após noite.

Tem castigo no tronco,
Tem chibata de feitor,
Tem sinhozinho bronco,
Muita tortura e dor.

Depois de longa viagem,
Sobre o fluido mar de sal,
Fixam-se na doce paragem,
Do amargo trabalho no canavial.

Para a vida é só labuta,
Para o sono é a senzala,
Se há resistência, se há luta,
Negro leva fogo de bala.

A lavoura divina,
A dádiva providencial,
É a escrava rotina,
Plantada pelo capital.

Negro, então, sofreu,
Todo tipo de humilhação,
Negro, pois, morreu,
Vítima de mutilação.

Mas negro é valente,
E no sistema fez um rombo,
Negro foi à luta,
E inventou o quilombo.

Sapiens


Sapiens


É tanta gente no mundo,
que assombra o espectador
são tantas línguas e nomes,
tanta riqueza e dor.

Tem sempre um povoado
gente na roça e na cidade
tem mansão e aglomerado
vivendo do luxo ou caridade.

Quem diria que o velho cometa,
ao esfriar se povoaria,
quem diria que a terra deste planeta
fosse o homem quem semearia.

Na beira dos lagos, nos mananciais,
nos leitos dos rios,
nos veios vazios,
nos desertos e pantanais.

No frio doloroso do gelo
nas curvas da estrada
manifesta onipresença
nas metrópoles do nada.

A espécie se proliferou
entre guerras e juras de amor eterno
o homem se disseminou
construindo o céu e o inferno.

Oceano de etnias
que a terra fecundou
que sacralizou os dias
na tela de um computador.

Fenômeno da natureza,
que criou asa e cativeiro,
a fome e a fartura na mesa,
súditos do império do dinheiro.

A teia

A teia



O átomo
a molécula
a célula
o tecido
organismo
a pele
os olhos
os desejos
os ossos
a luxúria
a fome
a força
o poder
o delírio
o assalto
do corpo
a mão
a idéia
o capital
a bomba
a morte
o sobrenatural.

Levanta!


Levanta !


Quebra o silêncio
meu caro rapaz
faz caminhar as pernas
não dê passo atrás.

Solta logo tua voz
faz ecoar o teu grito
abra, de novo, teus olhos,
arranca do peito o conflito.

Deixa circular o sangue,
deslizar pela tua veia,
faça reviver a vida,
mesmo que a veja feia.

Crie mais um poema,
faça mais um apelo,
acenda outra vez o fogo,
para derreter o gelo.

Pise com o passo firme,
para abrir o caminho,
seja estando entre as gentes,
seja caminhando sozinho.

A hora do adeus


A hora do adeus


É hora de dar adeus,
de chegar ao fim da estrada,
de fechar teus olhos nos meus,
transformar o tudo em nada.

É hora de descolorir as flores,
é o fim da primavera,
desfazer os laços de amores,
encerrar mais uma era.

Apagar, de vez, teu nome,
das linhas do meu caderno,
apagar, a chama que consome
e desprezar o amor eterno.

Atravessar o caminho estreito,
da lucidez à demência,
abandonar você no leito
e reinventar a ciência.

Mesmo entre o bem e o mal,
entre os crentes e ateus,
seja jubileu ou carnaval,
chega a hora do adeus.

Não mais


Não mais


Por quê ainda
buscar em ti
o rastro de tua alma
que já perdi.

Por quê ainda
sonhar teu sonho
se é tão cedo
chorar o teu choro
sentir o teu medo.

Por quê ainda
percorrer teu caminho
vagar em tua sombra
se permaneço sozinho.

Por quê ainda
morrer de dó
apiedar-se de ti,
mesmo estando
eu tão só.

Por quê ainda
sorrir o teu riso
cantar o teu canto
se o que me resta
é o pranto

Por quê ainda
mirar teu olhar
se o que busco em ti
não pude encontrar.

Desconstrução


DESCONSTRUÇÃO



O que era luz na escuridão,
o que era a poesia do amor,
tornou-se veneno do coração,
virou cegueira de caçador.

O que era o passe de mágica,
o que era o milagre da vida,
tornou-se cena trágica,
o caminho sem saída.

O que era só fortaleza,
o que era a farta ceia,
desnudou-se de sua beleza,
desfez-se como castelo de areia.

O que foi a utopia,
o que foi leito fecundo,
hoje o sol que não mais irradia,
a fome que não se sacia - no mundo.

Perdido


Perdido

Se digo adeus
antes de ir-me embora,
se ignoro apelos teus
é porque chegou a hora.

Se por onde passar,
não encontrar teu passo,
saiba que procurei,
até me matar de cansaço.

Se pela casa,
não sombrear teu nome,
saiba que tatiei por ti,
como quem morre de fome.

Se pela noite,
perder teu eco, tua voz,
será pior que o açoite,
será um silêncio atroz.

Se digo adeus
ou se ignoro o amor,
é porque não é sua,
a minha grande dor.

sábado, 29 de setembro de 2007

O amor





O amor
(Letra: Marcos Vinícius -
Música: Giovani Furlan)



Que amor te fará
rolar o corpo na areia,
banhar-te no sal do mar
ouvindo o canto da sereia.

Que amor te fará
abrir a porta do paraíso,
sendo teu chão e teu ar,
e roubando o seu juízo.

Que amor te fará
escorregar pelo arco-íris,
te perdoando a cada dia,
sob o encanto de Osíris.

Que amor te fará
percorrer todo o seu ser,
estancando a solidão,
te afogando de prazer.

Que amor te fará
ser outono, primavera,
ser inverno e verão,
revelando todo dia
a magia de cada estação.


O amor - Marcos Vinícius - Giovani Furlan

Onde?


Onde?



Onde está meu menino,
onde se escondeu
o gigante, tão pequenino,
que tem um jeito meu.

Onde está meu menino.
que nunca mais apareceu,
que danado esse destino,
onde meu amor se perdeu.

Despediu-se, assim depressa,
com um largo sorriso maroto,
que brincadeira tola é essa,
que leva o meu garoto.

Não é cabra cega,
nem pique-esconde,
quem é que o carrega,
não se sabe pra onde?

Vamos brincar


Vamos brincar


Menino,
escuta o segredo,
é tudo fantasia,
não tenha medo,
acorda bem cedo,
e verás que a noite
não resiste ao dia.

Menino,
escuta o segredo,
eles não vem em nosso quintal,
menino não tenha medo,
do bicho papão e do lobo mau.

Olha então, pela janela,
os vilões são fogos de palha,
nos entendemos com a bruxa Ofélia,
e escapamos dos irmãos Metralha.

Não temas essa velha malvada
não temas essa velha maluca
que assusta teu sono de madrugada,
dizendo ser a velha Cuca.

Menino é tudo brincadeira
menino não se esqueça,
não temas a feiticeira,
nem a mula sem cabeça.

Vamos então brincar,
de pique de esconde-esconde,
juntos, eu e você,
procurando o Boi Tatá
e o saci pererê.

Chocolate


Chocolate.


De presente te dei
um belo castelo,
que de muitas cores pintei,
verde, vermelho e amarelo.

Mil histórias contei,
da bela princesa, do Polichinelo,
mil cantigas cirandei,
comendo cocadas, doce de marmelo.

Entre soldados de chumbo,
e a criada Cinderela,
vimos o vôo do elefante Dumbo,
a Bela e a Fera.

De olhos arregalados,
enfim ficaste,
com os sonhos,
então sonhados,
e a cara suja de chocolate.

Oh Romeu!


Oh Romeu!

José trouxe flor,
trouxe um lenço perfumado
e mil juras de amor,
disse que não é pecado
querer só um pouquinho
do seu calor;
mas Mariazinha não deu.

Mateus mandou recado,
convite para um passeio na praça;
ela, então, se virou de lado,
disse que coisa mais sem graça,
e Mariazinha não deu.

Paulo deu presentes,
levou pra fazer trabalho de escola
na casa chique dos parentes,
onde mendigou o amor como esmola,
mas Mariazinha não deu.

Venho, então um tal Roberto,
oferecendo sanduíche e Coca-Cola,
metido assim, a garoto esperto,
mas ela não lhe deu bola,
Mariazinha não deu.

João convidou p'ra um cinema,
fazendo cara de Mané;
disse que não,
o filme é um dilema,
mais prefere um ballet;
e Mariazinha não deu.

Um dia chegou de longe,
um forte e rico forasteiro,
vindo não se sabe de onde,
prometeu muito luxo e dinheiro,
dizia chamar-se Romeu;
Mariazinha, então, se encantou,
e este sim, comeu.

Votem em mim


Votem em mim


Votem em mim,
que prometo a redenção,
das abelhas, todo o mel,
da Babilônia, um grande jardim,
e duas vagas no céu.

Vote em mim,
e finalmente verás
o mundo todo enfim
vivendo um momento de paz.

Votem na vitória,
que todas as portas se abrirão,
escrevam então, a história
da sua libertação.

Confie assim o seu voto,
talvez até fique rico,
ganhando sem jogar na loto,
sem nunca mais pagar mico.

Cabe agora a você
a sábia e nobre decisão,
votando em mim, então,
jamais vou te esquecer.

Te proporcionarei sossego,
taparei os buracos da rua,
te arranjarei um emprego,
pra venderes lote na lua.

Tenha confiança total,
me dê seu salvo-conduto,
e te darei belas praças,
largas calçadas e um viaduto.

Te trarei segurança,
construirei túneis e pontes,
criarei vagas e empregos,
se és velho, virará criança.

Votem em mim
e ampliarei seus horizontes,
a vida é mesmo assim,
enganamos bobos aos montes.

sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Os diplomados


Os diplomados




Quanta gente diferente
nesta sala de aula
tem vizinho, tem parente
tem o Jorge e a Paula.

O primeiro da chamada
é um tal de Adriano,
nunca acerta a tabuada,
entra ano e sai ano.

Tem uma menina aplicada,
a Maria Auxiliadora,
vive sempre enrabichada
na saia da professora.

Para não esquecer a matéria,
o garoto, o tal de Mário,
desenhou uma bactéria
bem na capa do fichário.

Lá do fundo deu um toque
a danada da Dalila,
que pichou a palavra rock
com corretivo na mochila.

Com ar de garoto esperto,
uma conversa bem sacana,
fez assim o tal Roberto,
pra ganhar a Mariana.

A quietinha do canto da sala
ganhou fama de lunática,
carrega todo dia uma mala
com livros de Matemática.

Tem aluno faltoso,
só assiste uma aula no mês,
o tal de Luís Cardoso
que detesta o Português.

Sem falar do pobre Zé
do qual todo mundo zomba
por causa dos bichos de pé
e de tanto tomar bomba.

Disse um dia Maria Alice
pra sua amiga Inês
que o latim é uma tolice,
é coisa de inglês.

E assim lá vai a sala,
sem escrever ou fazer soma,
vestida com traje de gala,
fazer jus ao seu diploma.

Salário


Salário


Tudo acontece no mundo,
que nunca fica parado,
o raso vira o profundo,
só não sobe o ordenado.

Tudo por aqui acontece,
uma eterna transformação,
o diabo reza uma prece,
só não sobe a remuneração.

Tudo sempre se modifica,
o sábio vira jumento,
a água sobe pela bica,
só não sobe o pagamento.

A meretriz fica pudica,
o vagabundo vai ao trabalho,
quem já foi, ainda fica,
só não sobe o salário.

Animal


Animal.



Tá escrito na padaria
'aqui não entra animal'
não sei porque não mais podia
comer pãozinho de sal.

Resultado da tal mania,
de bicho metido a gente,
quem, então, imaginaria,
macaco-pelado usando pente.

Donzelas depilam a perna,
usam sabonete, escovam o dente,
se maqueiam na caverna,
usam battom e trocam de lente.

Que mundo mais estranho,
que injustiça com o gorila,
que independente do tamanho,
não leva arma na mochila.

Para onde?


Para onde?



Menino, corre,
menino se esconde,
menino não morre;
menino, para onde?

Tira tua face estampada,
da página cinzenta do jornal,
o que fazes na madrugada,
meu pequeno marginal?

Guarde-se sob a ponte,
embrenhe-se pelo mato,
estreite seu horizonte,
até o próximo assalto.

Proteja-se menino,
que o destino, o fez ladrão,
um grão tão pequenino
levando estilete na mão.

Menino fique à espreita,
não saia ali do morro,
ande sempre pelas sombras,
e não grite por socorro.

Menino corre,
menino se esconde,
menino não morre;
menino para onde?

Menino


Menino


Meu filho, menino,
descendo a ladeira
passeando pelo mundo,
qual é teu destino?

Meu filho querido,
lá vai meu traquina,
com peito destemido,
cruzando a esquina.

Se apronta, meu pequeno,
que o dia vem vindo,
olhando-me com olhar sereno,
vejo, então, como és lindo.

Menino, acorda, é de manhã,
levanta, o dia te espera,
tem farinha e chá de hortelã,
faz frio, mas é primavera.

Corre, corre, meu danado,
saiba que o tempo não espera,
teu uniforme tá passado,
vista tua blusa amarela.

Vá, então, meu menino,
qualquer coisa, grite socorro,
tu sabes como é querido,
pela gente aqui do morro.

Na volta, tem boas novas,
e podes também jogar bola,
se tiver boas notas nas provas,
e muito sucesso na escola.

Menino, empina o papagaio,
brinca com tuas bolinhas de gude,
saiba que de casa sempre saio,
pra fazer por ti, o que ainda não pude.




Meu pobre menino,
te peço que não desespere,
se aquele tecido grã-fino,
não foi feito pra tua pele.

Já és grande, não chore,
tome meu colo, menino travesso,
o mundo é mesmo assim, não se amole,
a vida é boa, mas tem preço.

Não se deixe enganar, meu querido,
com as tolas propagandas da televisão;
não fique assim, tão sofrido,
querem apenas, te vender ilusão.

Não se perca, por favor, por aí,
tu bem conheces o caminho de casa,
e estarei sempre aqui,
para acolher-te sob minha asa.

Menino, não perca tua ingenuidade,
conserva-te criança, assim, desse jeito,
e mesmo que avance tua idade,
te abrigarei em meu peito.

Levanta-te da mesa do bar,
venha meu velho moleque,
te levo, então para o lar,
para curar teu pileque.

Não se assuste, meu pivete,
o mundo, às vezes, ameaça,
guarde, pois, a gilete,
pois se é caçador, também se é caça.

Menino, me conta o segredo,
me diga logo o porquê,
tanta revolta por não ter o brinquedo,
anunciado na tevê.

Menino, deixe de rixas,
ainda viramos o jogo;
por que apostar suas fichas,
numa fria arma de fogo?

Pelas praças


Pelas praças


No chão da praça da Rodoviária,
vem gente de todo lugar,
Congonhas, Pirapora e Januária,
vem gente da Serra do Mar.

Pelo coração da praça Sete,
vem o bêbado e o pipoqueiro,
menino vendendo chiclete,
todos num grande viveiro.

Pelas veias da praça da Estação,
trafega o jornaleiro e o camelô,
trabalhador faz manifestação,
sob os ruídos do metrô.

Nos jardins da praça da Liberdade,
se enraizam as flores do poder,
do mundo novo, sem caridade,
onde a lei é matar ou morrer.

Apelo final


Apelo final



Vou jogar moedas no lago
e fazer algum pedido,
ver se Deus conserta o estrago
que deixou o rio fedido.

Vou rogar aos orixás
e fazer muita oração,
passar a morte pra trás
e cantar outra canção.

Vou acender uma vela,
e fazer uma mandinga,
vestir camisa amarela,
beber água da moringa.

Vou lavar os pés no mar,
carregar patuá no pescoço,
fugir dos jogos de azar
e usar colares de osso.

Vou beber em todo dia santo
e jejuar no carnaval
vou me cobrir com o manto
em mais outro ritual.

Vou pedir, então a Deus,
apenas duas estrelas no céu,
o brilho, enfim, dos olhos teus
o grafite, um pedaço de papel.

Tic-tac


Tic-tac


Tic-tac
A noite insone
Tic-tac
o mosquito maldito
Tic-tac
o bêbado que passa
Tic-tac
o vizinho que geme
Tic-tac
o suor pelo rosto
Tic-tac
o medo do pesadelo
Tic-tac
o frio na espinha
Tic-tac
pelo dia inteiro
Tic-tac
pela madrugada adentro
Tic-tac
o urro do patrão
Tic-tac
o barulho do vento
Tic-tac
o passo do ladrão
Tic-tac
O coração explode,
o relógio pára
e o tempo não.

O vírus letal


O vírus letal



É o vírus letal
que assola o planeta,
deixa o paraíso infernal,
coisa de Deus ou Capeta.

O ser virulento,
que envenena o mundo,
contamina o vento
e o oceano profundo.

A coisa pestilenta,
que a vida encerra,
uma nova tormenta,
que balança a Terra.

A praga maldita,
que devasta floresta,
quer matar e ficar rica,
e da morte, faz festa.

Dez reais


Dez reais.


Como posso proteger Maria,
o Pedro, o Paulo e a Tereza,
como posso criar minha cria,
se há dez reais sobre a mesa?

Como posso caminhar decente
e manter a luz acesa,
como posso escovar o dente,
se há dez reais sobre a mesa?

Como posso ficar doente,
como aplacar a tristeza,
insistir em ser gente,
se há dez reais sobre a mesa?

Como posso adormecer meu filho,
se falta isso, falta aquilo,
se há dez reais sobre a mesa,
como posso viver tranqüilo?

Como posso comer o feijão,
como posso ter alguma certeza
se ainda não comi nem o pão,
se há dez reais sobre a mesa?

Dualidades


Dualidades


O acaso da fecundação,
a semente na terra,
o romper do embrião,
no vale, na serra,
em qualquer estação,
a água, a chuva,
o orvalho, o germinar,
a magia da vida
condenada a ressuscitar.

O ocaso da devastação
a gente na guerra,
o rosnar do canhão,
no céu, na terra,
em qualquer ocasião,
o urânio, o plutônio,
o napalm a mutilar,
a máquina da morte,
programada para exterminar.

Dualidades


Dualidades


O acaso da fecundação,
a semente na terra,
o romper do embrião,
no vale, na serra,
em qualquer estação,
a água, a chuva,
o orvalho, o germinar,
a magia da vida
condenada a ressuscitar.

O ocaso da devastação
a gente na guerra,
o rosnar do canhão,
no céu, na terra,
em qualquer ocasião,
o urânio, o plutônio,
o napalm a mutilar,
a máquina da morte,
programada para exterminar.

O bicho


O bicho



O bicho urbano
caminha pela cidade,
com passo de humano
e olhar de selvagem.

O bicho urbano,
o monstro vaidoso,
articula outro plano
com o jeito tinhoso.

O bicho danado
que anda no asfalto,
da rua ao Senado
faz guerra ou assalto.

O bicho avareza
que chafurda bem fundo,
devora a mesa,
miserando o mundo.

Sete horas


Sete horas.

Já são sete horas,
a noite chegou,
daqui de dentro do quarto,
não vejo o que se passa lá fora,
quem sabe outro assalto,
mendigo pedindo esmola,
talvez a mãe que suplica
pelo filho que chora.

Já são sete horas,
o dia se foi,
as portas se fecham,
os homens se vão,
encerram o trabalho,
até amanhã ao patrão,
com o parco salário,
a fome de pão.

Já são sete horas,
a fábrica apita,
a cidade transborda,
muitos já vem,
muitos vão-se embora,
antes do sonho se acorda,
atados ao ritmo da hora.

Já são sete horas,
e os passos se apressam,
os olhares se prendem
na cadência retilínea dos ponteiros
de milhões de relógios;
o tempo transcorre,
o tempo que passa,
o tempo que morre.

Já são sete horas,
os faróis se acendem,
os olhares reluzem
no emaranhado das multidões,
muitos vão pelos bares,
muitos se embalam nas televisões,
em todos os cantos,
em todos os lugares,
quitam as vidas - em prestações.

Já são sete horas,
uns permanecem nas ruas,
outros recolhem-se aos lares,
muitos, sem colo, mal dormidos,
são atropelados no asfalto,
outros, insones, na calçada fria,
planejam o assalto,
à espera de um novo dia.

O samba


O samba


O samba
que requebra a mulata,
que faz escorrer do corpo - o sal,
vem dos chocalhos da mata,
dos índios e dos maracás,
das violas, das cordas de Portugal,
dos batuques, dos terreiros
vem dos cantos de Iemanjá.

Os sons da terra,
que atravessam os oceanos,
batuques de festa,
batuques de guerra,
unem os povos
e os meridianos.

Samba
que envolve a alma da moça,
batuque de sonho,
batuque de vida,
batido que quebra a louça,
sacode o povo na avenida.

Samba que sobe o morro,
na voz da gente que quer cantar,
na voz de quem pede socorro,
tocando pandeiro, marimba e ganzá.

Herança de quilombola,
que tocava o roncador,
o branco empresta a viola,
o preto toca o tambor.

Samba que sobe o morro,
que canta a alegria
e afugenta a dor,
rasga a noite
varando o dia,
despertando a libido
e trazendo o amor.

Samba da gema,
samba original,
traz o canto de Tupã
do fundo do matagal,
entoa a força de Iansã
e a história ritmada
nos barracos de Adoniran.

Saudade escrava


Saudade escrava


Descem p'ros mercados e feiras,
de corpos nus, cansadas,
olhos suados, encharcando as coleiras,
desembarcam escravizadas.

Descem p'ros mercados e feiras,
dos portos aos canaviais,
derretem-se nas caldeiras,
e varam noites inteiras,
inventando carnavais.

Jovens pérolas da noite,
encantam os sonhos dos feitores,
e ainda nem libertas do açoite,
caem nas garras de seus senhores.

Assim o branco ordena,
chamando o capitão-do-mato,
fazendo jogo de cena,
quer preta de fino trato.

Sob as sedas da velha Europa,
estupra o ventre da mãe nagô,
o bafo doce do engenho, então assopra,
a lágrima de sal que derramou.

Terra doce,
mar de sal,
se cedo ainda fosse,
não fosse a profundeza abissal,
voltariam ao que se afastou
num grandioso ritual.

Súplica


Súplica


Oh Deusa dos negros,
onde fitas esse olhar de amargura?
Revela, enfim, teus segredos
dos veios da vida, da semeadura.

Oh Deusa eterna,
esculpida no ébano,
revela o mistério
do sangue derramado;
deixa-nos ler essa íris,
do teu olhar encantado.

Deusa dos negros,
da outrora terra desgarrada,
por que morrem teus filhos,
com as mãos na enxada?

Da velha pátria amada,
apenas o sonho restou,
o beijo da sereia encantada,
a poesia que naufragou.

Adeus África mãe,
as correntes de ferro
desatam meu amor por ti;
ainda volto um dia,
nas asas da cotovia,
no canto do bem-te-vi.

Oh Deusa dos pretos,
por que desvendaste as moradas?
por que condenaste teus filhos
ao inferno de mãos amarradas?

Teu ventre rasgado
ao som das baionetas e dos canhões
profanam o solo sagrado,
onde repousam infinitas gerações.

Oh Deusa mãe
por que abandonaste tua criatura
à própria sorte,
por que lançaste teus homens
à travessia da morte?

Por que Ó Rainha das estações
condenou teus mais bravos guerreiros
aos porões do tumbeiros
das sombrias embarcações?

O mar salgado
o mar tão sedento,
engole tantos homens
ao simples sopro do vento.

O mar navegado,
carrega, assim, noite e dia,
o batismo e o pecado
e o homem-mercadoria.

Oh Deusa do ébano
que criaste a noite,
por que permitiu a senzala
e a violência do açoite?

Por que sepultou nossos homens
nos valas abertas dos canaviais?
Por que condenou à miséria teus filhos
nos caminhos do ouro das minas gerais?

Amor na prateleira


Amor na prateleira

Pois diga então,
Qual o teu preço,
Que te darei
Meu endereço
Te amarei em uma hora
Num amor sem fim
Ou começo
Te beijarei na chegada,
E ao ires embora,
Nem ao menos adeus,
Pois não mais te conheço.

O lençol de Luzia


O lençol de Luzia


Da janela da casa
flameja o lençol de Luzia,
como bicho de asa
a revoar a fantasia.

Das cortinas do quarto
o aroma que ardia,
a nudeza do ato,
a natureza sacia.

Lençol de flores,
pendurado na janela,
marca de mil amores,
na pétala amarela.

Lençol que revoa ao vento,
espalha o pelo e o cheiro,
embriaga o pensamento,
desejo de amor derradeiro.

Lençol que ao tempo sacode,
revela noites não dormidas,
revela o que o desejo pode,
entre as belas adormecidas.

Tecido de trapo,
tecido de seda,
embriaga quem desce,
pela alameda.

Os sonhos revoltos
na dança dos panos,
são bichos soltos,
nas rugas dos anos.

Estendida alegoria,
e um porte triunfal,
revoa o lençol de Luzia,
sobre o imenso varal.

Quem dirá?


Quem dirá?


Será que é loucura
será que é fantasia.
seguir sempre a estrada
que o olho não via.

Será que é pura sorte,
será que é azar,
se encontrar com a morte,
na beira do mar.

Será que é descanso
será que é fadiga,
pescar à beira do rio manso,
labutar nas trilhas da vida.

Será que é ironia,
será que é por acaso,
o mundo entregue à orgia,
das eternas forças do atraso.

Será que é acidente,
será que é sina,
o velho caminhar doente,
sob os olhos da menina.

Será que é estilhaço,
será que é comprimido,
pedaços do peito de aço,
lágrimas do olho de vidro.

Será fantasia,
será que é loucura,
teu corpo claro, tão jovem,
a sombrear a noite escura.

Será que é vício,
será que é solidão,
buscar algum artifício
prá consolar o coração.

Por quê, então, será
que todo meu sangue esquenta
mesmo que meu peito gele,
quando sinto se aproximar,
a tua formosa pele?

domingo, 16 de setembro de 2007

Teu corpo




Teu corpo
(Música: Giovani Furlan
Letra: Marcos Vinícius.)


Teu corpo é paisagem
pendurada na janela,
é quase miragem,
a imagem mais bela.

Teu corpo, tão perto,
é viagem,
visão do paraíso;
teu porto, tão certo,
de passagem,
faz-me perder o juízo.

Teu corpo, à flor da pele,
dos pés à cabeça,
é infinita beleza;
do vulto da tua nudeza
não há quem se esqueça.



Música (áudio)




sábado, 15 de setembro de 2007

Introspecção




Introspecção



De nada adianta o lamento,
a vida é mesmo assim,
se me entrego ao pensamento,
me recolho dentro de mim.

Por mais que percorra estradas,
ou que atalhe o caminho,
atravessando encruzilhadas,
ainda assim, estarei sozinho.

E quando me perder no escuro,
procurando o que não vejo,
será do passado, não do futuro,
o tremor daquele beijo.

Quando se fecharem os olhos, de vez,
e sobre mim, se trancar a porta,
pagarei o preço da estupidez,
com o peso da alma morta.

Pressão alta



Pressão Alta


Meu coração,
nau sem rumo,
a velejar,
atravessa calmarias
e temporais,
beijando sereias
no porto do cais.

Meu coração,
rua estreita,
fácil de atravessar,
é conversão à direita,
impossível trafegar.

Meu coração,
porta aberta,
difícil penetrar,
carrega a hora certa,
que pode atrasar.

Meu coração,
casa abandonada,
o dia inteiro é festa,
se ainda resta,
o beijo da namorada.

Desencontro fatal




Desencontro fatal


Talvez quando voltares
não mais me encontre,
mesmo que vasculhe os lugares,
onde estivemos
ainda ontem.

Talvez, quando de novo,
por aqui, você passar,
mesmo que procure entre o povo,
não mais estarei
onde sempre pude estar.

Quando, enfim, você chegar,
caso procure por mim,
não mais me achará
onde sempre
costumava andar.

Mesmo que venha ligeiro,
rasgando o céu,
de sul a norte,
cruzando o mundo inteiro,
ainda perderá para a morte.

Caminhos turvos



Caminhos turvos


Talvez seja sorte,
talvez seja tormento,
esperar pela morte,
a qualquer momento.

Talvez venha do sul
talvez venha do norte,
o gigante azul
do firmamento.

Talvez seja destino
ou obra do acaso
a fome do menino,
a lógica do atraso.

A vida talvez seja
o pagamento fora do prazo,
o querer saciar
o que se deseja,
o afogamento no lago raso.

O tempo



O Tempo


Entre os dedos
a cada momento,
carregando os passos
a todo instante,
nas ondas do mar
ou no sopro do vento,
transcorre,
caudalosamente,
o tempo.

No andar que tem pressa
e corre,
no passo cansado
que caminha lento,
caminha aquele
que nunca morre,
o grandioso
e magnífico tempo.

Tempo que germina
e perece
onde a existência transcorre
tempo onde se reza
uma prece
tempo onde se embriaga
num porre.

Entidade suprema,
que derruba os impérios
e apaga os vulcões,
tempo que desvenda mistérios,
rasgando as bandeiras,
atiçando a chama
das revoluções.

Força mãe,
força motriz,
força que empurra os ponteiros,
que faz dizer
o que não se diz,
transformando a mentira,
em fatos verdadeiros.

Tempo que cria
e corrói quimeras,
tempo alienado do homem,
que tem preço,
tempo que transcorre em eras,
tempo que vira
o mundo do avesso.

Gigante brutal
e invisível,
viaja pela eternidade,
sem endereço,
recriando eternamente,
a história incrível
que não tem fim
ou começo.

O circo chegou




O circo chegou



Naquele dia,
o circo chegou.
Veio João, veio Maria,
A cidade se alegrou.

Dizia o grandalhão:
Senhoras e senhores,
Muita atenção
Hoje tem espetáculo
no final da rua das flores.

Veio o macaco,
veio o leão,
veio toda a bicharada,
pra mostrar a Criação.

Elefante subindo escada,
cachorro jogando bola,
o palhaço marmelada
o mágico e sua cartola.

Veio um monte de artista,
veio até domador,
veio malabarista
e um belíssimo ator.

Veio o trapezista
coisa que não se imagina,
a mulher que engole fogo
e a dança da bailarina.

Alegrou a criançada,
daquela cidade de sorte,
que riu da palhaçada
e viu o globo da morte.

Cantiga



Cantiga


Menina bonita
com o rosto pintado,
com laço de fita,
já quer namorado.

Aura de anjo,
batom vermelho,
sorriso perfumado,
na frente do espelho.

Com os olhos brilhantes
sobre a mão pequenina
sonha com diamantes,
a jovem menina.

Com cheiro de aurora
e jeito de flor,
acredita que agora,
está pronta p'ro amor.

Teus olhos, menino



Teus olhos, menino


Teus olhos, menino,
se viram p'ra mim,
me estremeço assim;
qualquer resposta
que possa lhe dar,
nunca vai saciar seu olhar,
meu menino.
Até onde enxergas o mundo,
que imagem vislumbra
que não posso ver,
até onde alcanço
teu olhar profundo,
coisa mais linda,
meu pequeno ser.


Teus olhos, menino,
que fixamente,
penetram em tudo,
ancoram em mim
sem desatino;
nossos sonhos renascem
sempre tão cedo,
não tenhas medo,
a vida é bela,
e o mundo,
mais um brinquedo.

Mulheres-damas



Mulheres-damas


Sob a luz dos automóveis,
reluzem os batons das mariposas,
despertando a libido, muitos querem com elas,
por não terem em suas esposas.

Sob a luz dos néons da cidade,
brilham as noites da grande atriz;
Sob os corpos de qualquer idade,
tremula o corpo ofegante da meretriz.

Após o trago seco em mais uma cerveja,
depois de outra lida num dia de luta,
penetram em suas entranhas,
e descansam em seu leito de prostituta.

Nos anúncios estampados em qualquer jornal,
despertam a fantasia louca reprimida,
que cede ao impulso do desejo animal
e se atiram nos braços da mulher da vida.

Sob as sedas dos palácios de ouro,
debaixo dos retalhos de um tecido cafona,
cotadas, ostentadas, como um grande tesouro,
nos antigos mosteiros ou nos quartos de zona.

Desfilam entre a noite e seus bordéis,
a nova rameira, a messalina, a marafona,
atraem milhares deles, generais e coronéis,
traficando os prazeres e a inversão dos papéis.

Entre os companheiros clientes e o coito mercenário,
arranca da carne a vida e o salário,
antes que desperte uma nova manhã,
que inicia o sono da jovem cortesã.

Coração desplugado


Coração desplugado



Te vi chegar,
te vi sair,
tão linda na chegada,
tão bela na saída,
te vi chegando radiante,
te vi saindo,
que pena,
tão distante.

Redes, sinais, conexões,
trama, destrama,
a vida plugada,
mais uma,
mais outra madrugada,
da virtualidade dos nossos corações.

Navegante sem rumo,
nau sem prumo,
na esquina de Montes Claros,
com outra rua qualquer,
de qualquer parte do mundo,
te vi desaparecendo veloz,
a mais de megabytes por segundo.

Quantas doses de mentira,
quantas doses de verdade,
conectar-se, outra vez, à realidade,
nos perdemos, nos encontramos,
em apenas um bar da cidade
nos perdemos, nos encontramos,
nos nós atadas da virtualidade.

Apareceste como uma estrela,
foste como uma estrela,
dos céus reluzentes da trilha digital,
dos céus de néon da nossa fria capital;
no cruzamento, em alguma via real,
o desencontro, do descaminho virtual.

De uis e de ais


De uis e de ais


Terá sido de uis e de ais,
o suspiro escondido,
sob os finos lençóis,
no dossel dourado,
por trás dos portões
dos palácios imperiais?
o gemido dos nobres e burgueses,
sobre a fina messalina,
sob a renda dos seus enxovais?
o ranger daqueles dentes,
entre aranhas e serpentes,
sob as voluptuosas carícias sensuais?

Terá sido de uis e de ais,
os últimos gritos da boca trêmula,
da vulva rasgada,
estuprada pelas baionetas dos generais?
o amor recortado,
por qualquer trocado,
nas esquinas dos becos,
nas curvas dos corpos,
nas páginas amarelas
dos nossos jornais?

Terá sido de uis e de ais,
o estufar dos formosos seios,
na penumbra dos candeeiros,
pelo vinho derramado
sob a luz das velas dos castiçais?
a dança rítmica carnal,
trespassada no tempo,
eternizada a cada momento,
nos amores mortos
dos nossos ancestrais?

Terá sido de uis e de ais,
os partos das meninas-mães,
filhas abastadas
das melodias mercantilizadas,
do grande mercado dos carnavais?
a madrugada das virgens,
das primeiras-damas,
trancadas nas casas grandes,
nas casas brancas,
entregues à gula dos neocanibais?

Terá sido de uis e de ais,
o tremer da carne nua,
entre os dentes na nuca,
sob o clarão da lua,
envolta em macabros rituais?
o roçar no teclado,
com o olho vidrado,
pelos estímulos virtuais?
a dor dos santos queimados
a redimirem seus pecados,
pelos prazeres carnais?

Terá sido de uis e de ais,
o adormecer das donzelas,
sob a armadura de ferro,
dos senhores feudais?
as milhões de posições,
no leito das multidões,
consagradas nos antigos manuais?
o ventre sangrado,
coração apunhalado,
sob as espadas dos samurais?

Terá sido de uis e de ais,
o tremor que sacode a terra,
que inicia ou termina a guerra,
no gozo metafísico
dos amantes imortais?
o canto das sereias cativas,
seduzidas à morte,
pelas fervorosas tentações dos bacanais?
os amores plurifórmicos,
elípticos, disformes,
não encontrados nos volumosos anais?

Terá sido de uis e de ais,
o sono cortado,
o peito aberto, o vestido rasgado,
das antes, pobres vestais?
o amor selvagem, paleolítico,
sob o fogo da aurora dos tempos,
nos olhos dos velhos neandertais?